A porta estava entreaberta quando cheguei – como ele disse que estaria. Era por volta das dez da manhã, horário em que o sol começa a ficar quente demais para as minhas botas.
Ele mal me olhou, esticou a mão e me entregou dentro de uma sacolinha de supermercado. Eu tremia. Tremia e suava pelas mãos. Peguei, soltei um ‘boto fé, valeu pela força’ e deixei o dinheiro em cima da mesa. Sequer conferi o pacote, fazer isso seria desnecessário, já que não saberia o que averiguar. Não queria ficar mais um minuto sequer alí.
Peguei o mesmo ônibus, fazendo o caminho inverso. Talvez a essa hora ela já estivesse a caminho da minha casa.
Nunca pensei que poderia fazer isso. Nunca me ví nessa situação. Querendo ou não estava fazendo algo ilegal e criminoso, porém totalmente revolucionário. Estava realmente colocando em prática o meu discurso. Uma briga que comprei pelos corpos que não são meus. Pelos corpos que nunca serei.
Confesso que tive medo. Muito medo. Afinal de contas defender uma idéia é muito diferente de executá-la. Confesso também que no caminho pensei em cada argumento que sempre fui capaz de derrubar, em cada argumento que desligitimei. Mas a verdade é que...e se tudo aquilo fosse um erro? E se eu estivesse sendo cúmplice de um assassinato? Vale a máxima de que terminam nossos direitos quando começa o do próximo?
Sacudi a cabeça e lembrei-me que a questão é que é sempre o próximo, sempre o próximo e sempre a anterior. E a anterior nunca tem direitos.
Pensar aquelas coisas me fez sentir um covarde, um hipócrita.
Apesar de todos essas questões em minha cabeça, não havia espaço para ‘tomar uma decisão’, a decisão foi tomada ideologicamente há muito tempo. No tempo em que assumi o roxo como a cor da minha revolução.
Por que as revoluções tem cores, e a revolução vermelha já está muito desbotada.
Cheguei finalmente em casa. E no portão ela chorava. Disse-me que havia desistido, que realmente tinha sido culpa dela.
Dizia que não podia. Não tinha direito. Era seu dever. Sua obrigação. Sentia-se um monstro fazendo aquilo. Disse que teria volta. Que tudo na vida tem volta.
Entramos e pedi para que se acalmasse. Dei um suco de maracujá e ligamos a TV no Chaves. Preferi não dizer nada, apenas a acariciei por um tempo, e ria da TV forçadamente.
Dizer a ela que era sua decisão era colocar muita responsabilidade em cima dela mesma. Dizer que era decisão dos dois era deslegitimar mais uma vez sua autonomia – até porque os dois não existiam. Por isso preferi não dizer nada.
Sem dizer nada, escovei os dentes mais um vez e calcei as botas. Ela nada disse. Andamos as cinco quadras a pé, o endereço era fácil de encontrar.
A porta estava entreaberta quando ela chegou.